"O monge", de Matthew Gregory Lewis: o auge do gótico, o precursor do horror
- Oscar Nestarez
- 16 de abr.
- 4 min de leitura

No final do século 18, a literatura gótica passava por um grande momento. Décadas depois de o britânico Horace Walpole ter publicado O castelo de Otranto, o fenômeno das histórias sinistras, repletas de elementos sobrenaturais, fascinava um número cada vez maior de leitores. Também capturava a imaginação de outros escritores ingleses, como Clara Reeve (O velho Barão inglês, de 1778) e William Beckford (Vathek, 1786). Já na Alemanha, Friedrich Schiller surgiu com O aparicionista, hoje reconhecido como primeiro romance gótico do país, publicado em partes entre 1787 e 1789. Embora inacabado, o livro de Schiller influenciou nomes como Lord Byron, que escreveu o poema Oscar d’Alva inspirado por ele; e Ann Radcliffe, que retira de O aparicionista a inspiração para o recurso do “sobrenatural explicado”, que se tornaria uma de suas marcas.
Também entre os influenciados por Schiller estava um jovem inglês chamado Matthew Gregory Lewis, que seria responsável por uma das obras mais marcantes de toda a tradição gótica. Em 1796, com apenas 19 anos, Lewis publicou anonimamente o romance O monge, que causou furor imediato. Dividida em três volumes e carregada de erotismo e violência, a obra escandalizou um público que até então estava acostumado a narrativas que pouco tinham disso. A comoção também se deu pelo enredo: aqui temos a história de Ambrosio, um religioso de enorme prestígio que, enfeitiçado pela própria fama, se corrompe das piores formas possíveis.
O escândalo causado por O monge foi acompanhado de popularidade. O livro fez grande sucesso assim que apareceu, a ponto de o autor logo publicar uma segunda edição assumindo sua autoria. Lewis também havia se projetado ao se tornar membro do parlamento inglês, e na esteira da fama ele recebeu o apelido de “Monge”. A controvérsia em torno do romance, porém, seguiu intensa, inclusive causando mal estar na família do jovem autor; com o passar dos anos, ele publicou novas versões marcadas pela autocensura.
Os séculos se seguiram e a influência de O monge só aumentou. O livro se estabeleceu como a maior referência do horror gótico, a vertente mais sangrenta do movimento que tem início com O castelo de Otranto. Também se tornou um precursor do próprio horror, que como gênero só vem a se firmar de vez no século 20. Pudera: não poucas cenas concebidas por Lewis ainda hoje nos marcam como se fossem ferro em brasa. Os rituais satânicos em cemitérios e criptas, e a crueldade de certos personagens e narrativas paralelas, como a da freira sangrenta, continuam impressionantes mais de dois séculos depois.
Nada, porém, é tão aterrador quanto a transformação do próprio Ambrosio. Sua queda é vertiginosa, pois acontece de muito alto. A primeira cena do livro dá a medida de seu prestígio: proferindo o sermão em uma igreja de Madri, onde se passa a história, o jovem monge arrebata a multidão que se espreme para vê-lo. Por ali estão alguns dos principais personagens da trama, como a bela Antonia, que figura como uma das “mocinhas” de O monge, modelo de decoro e virtude a ser confrontado pelos inúmeros vícios ao redor; e dom Lorenzo, um dos heróis, que se atrai imediatamente por Antonia.
Até então, Ambrosio, que quando bebê fora deixado em frente a uma abadia de Madri, havia dedicado seus trinta e poucos anos apenas a Deus. Jamais saía do monastério e o rigor com que exercia sua fé espantava até mesmo seus confrades religiosos. Tudo ia bem até que um deles, o noviço Rosario, se aproxima do monge. Logo descobrimos se tratar de um estratagema: Rosario na verdade é Matilda, uma mulher que se infiltra no monastério para seduzir Ambrosio. Atordoado pela revelação, o monge acaba por aceitar a aproximação; então, ao colher uma flor para ela, é picado por uma serpente. Em uma cena de forte simbolismo erótico, Matilda suga o veneno dos dedos de Ambrosio; os dois selam, assim, um pacto não de sangue, mas de peçonha. Inicia-se a lenta e certa derrocada do protagonista.
Este é o ramo principal do romance, mas outros se interpõem como narrativas emolduradas — a exemplo da memorável história da freira que sangra, um dos pontos altos do livro. Trata-se de uma figura espectral que assombra o castelo de Lindberg, onde Agnes, a irmã de Lorenzo, vive enclausurada. Em uma noite a cada cinco anos, a freira ressurge aterrorizando os corredores e os salões do castelo, e as descrições de Lewis não poupam detalhes grotescos da aparição.
Seguindo o modelo dos romances góticos de então, O monge traz baladas em versos e longas narrativas de aventuras envolvendo bandoleiros e saqueadores. Mas a obra de Lewis brilha mesmo quando investe no horror, em especial ao revelar, diante de nossos olhos atônitos, todo o sinistro esplendor do monstro em que Ambrosio se converte. Ele é capaz dos atos mais abjetos, e aqui também o autor, pelo menos na primeira versão sem autocensuras, é minucioso nos detalhes escabrosos. Toda essa perversão haverá de ser punida, naturalmente. Ainda assim, o desfecho do romance supera expectativas. É o tipo de livro cuja leitura terminamos com um travo amargo na boca, contemplando o vazio.
E a boa notícia é que teremos, aqui no Brasil, uma edição bastante completa de O monge. A editora Clepsidra, especializada em literatura gótica, está com uma campanha de financiamento coletivo para a edição crítica do livro de Matthew Gregory Lewis. O volume levará em conta as principais variantes textuais, rastreando e destacando as discrepâncias mais significativas nas cinco edições britânicas diferentes. A tradução da prosa ficou a cargo deste colunista, e a versão dos poemas foi realizada pelo poeta Douglas Cordare. Entre as metas estendidas, estão ilustrações, paratextos e narrativas que inspiraram Lewis a escrever sua obra; tudo a cargo de pesquisadores do gênero, em uma edição à altura da importância da obra. A mesma altura de onde Ambrosio continua caindo, mais de duzentos anos depois.
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