Eco-horror na literatura: quando a natureza dá o troco na humanidade
- Oscar Nestarez
- há 6 dias
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O pintor alemão Caspar David Friedrich (1774-1840) tem um quadro bastante famoso intitulado “Caminhante sobre um mar de névoa” (você pode vê-lo abaixo). A obra apresenta um homem de costas diante de uma paisagem montanhosa, nevoenta e tempestuosa. Por seus trajes e sua bengala, sabemos se tratar de um homem elegante, talvez um nobre. Nos seus cabelos desarrumados e nas brumas que se deslocam, adivinhamos a ventania que açoita o lugar. Nome de destaque do romantismo nas artes plásticas alemãs, Friedrich assim retratou um dos principais motivos desse movimento: a recusa às amarras da sociedade e a natureza como extensão ou espelhamento do tumultuado universo interior do artista.

O quadro simboliza uma das muitas formas como, em tempos passados, a ecologia figurou nas artes em geral. Ao longo dos séculos, as paisagens naturais surgiam ora como espaços harmônicos, de reconciliação, ora como metáfora de sentimentos de pintores, escritores, músicos, e por aí vai. Uma figuração no geral amigável, cúmplice, de conexão com a humanidade.
Mas as coisas mudaram, e rápido. No começo do século 21, o mundo começou a sentir os efeitos das mudanças climáticas — que logo se transformaram em uma declarada emergência. Difundiram-se termos como antropoceno, isto é, a época em que os efeitos da ação humana no planeta já são reconhecidos como capazes de produzir impacto geológico. Aumento do nível do mar e da temperatura terrestre são alguns dos indícios disso; sinais de que, desde a revolução industrial, a ação humana alterou o planeta de maneiras profundos.
Outro termo que ganhou amplo destaque nos últimos anos é a ecocrítica, ou seja, o campo de estudos das relações culturais e artísticas entre seres humanos e o mundo não humano (animais, plantas, minerais, climas, ecossistemas). Em especial a partir da literatura, a ecocrítica vem mapeando livros nos quais a emergência climática exerce papel central — e é crescente o número de obras que têm, como motivo principal ou pano de fundo, as desastrosas consequências de nossa ação no planeta. Só no Brasil há vários exemplos nesse sentido, como os romances Caminhando com os mortos, de Micheliny Verunschk (vencedor de um dos mais importantes prêmios da literatura de língua portuguesa, o Oceanos) e Os grandes carnívoros, de Adriana Lisboa, além de algumas histórias da coletânea O deus das avencas, de Daniel Galera.
Em resumo, a ecocrítica escancara uma mudança radical de nossas relações com a natureza. Ficaram para trás os espaços amenos e amigáveis, de conexão e harmonia. Hoje, o mundo não humano que emerge na ficção contemporânea tende a ser hostil e ameaçador para a nossa existência — claro, sempre em consequência de nossa própria ação devastadora.
As áreas mais sinistras da literatura, é claro, também absorvem essa transformação. Em especial o gênero do horror, que se constitui a partir de ameaças à vida humana. Com a emergência climática, estamos tratando de uma potencial extinção, o tema mais poderoso que se pode observar em histórias assustadoras. Assim, a perspectiva da ecocrítica aplicada aos estudos do gênero deu origem a um novo termo, ou subgênero, o eco-horror. Ele se junta a outro, já mais estabelecido, o ecogótico.
Ambos os termos definem obras ficcionais nas quais a natureza causa medo, ansiedade e outras emoções negativas. Em vez de amiga, ela surge como adversária da humanidade. Mas enquanto o ecogótico incorpora um mal estar geral e ancestral entre o ser humano e o mundo que o cerca — ou seja, algo que ocorre desde sempre —, o eco-horror se estabelece a partir da emergência climática. A partir do momento no qual pode ser tarde demais, e que é questão de tempo para o planeta dar o troco, como já vem dando.
Em outras palavras, histórias de eco-horror são aquelas em que a natureza se vinga, em que se torna monstruosa. A humanidade é, ao mesmo tempo, vilã e vítima: décadas e décadas de abuso do planeta cobram seu preço, e as consequências são aterradoras. Assim, o subgênero muitas vezes se vincula às narrativas distópicas ou apocalípticas, nas quais tudo já se perdeu e só nos resta sobreviver.
Um caso é o romance brasileiro Corpos secos (2020), publicado em 2020 por quatro autores e autoras: Luisa Gleiser, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado, que foi vencedor do Prêmio Jabuti 2021. A trama se passa no Brasil atual e tem, já como ponto de partida, o pressuposto da devastação ambiental: o uso irregular de um novo tipo de agrotóxico que, em vez de dizimar certas larvas, causa uma nova doença que literalmente seca os corpos humanos, eliminando a atividade cerebral e despertando neles uma sede de sangue mortífera. Soma-se à pandemia o turbulento cenário político causado por um governo reacionário, presidido por um homem de nome Jair.
Corpos secos traz uma história de zumbis na perspectiva do imaginário político contemporâneo brasileiro, e usa um monstro de nosso folclore, o corpo-seco, que Luís da Câmara Cascudo descreve como alguém “rejeitado pelo túmulo”, pela terra, e que vaga como um morto-vivo. Na releitura do morto-vivo como corpo-seco feito pelo romance há uma condenação sumária: a Natureza se recusa a ser a morada final da espécie que a devastou. A humanidade é monstruosa tanto para si quanto para a própria Natureza. É, ao mesmo tempo, vítima e vilã.
Outra obra recente que se enquadra no subgênero é O céu da selva, romance de 2023 da cubana Elaine Vilar Madruga recém-publicado por aqui. Nele, a selva literalmente devora crianças que são oferecidas a ela em troca de itens básicos de sobrevivência, como animais e vegetais. De início, essa selva é monstruosa sem qualquer motivo aparente.
Mas à medida que acompanhamos a história de Santa, sua mãe (conhecida apenas como “a velha”), seu parceiro Lázaro, sua irmã Ananda e “as crias” — crianças, filhas de Santa, que alimentam a natureza —, percebemos se tratar de um mundo profundamente hostil. À exceção da velha e das crianças, que só sabem sentir medo, não há resquício algum de humanidade entre as personagens, restando apenas impulsos animalescos e violentos. São monstros entre si e para o mundo ao redor. A selva surge, assim, como monstro muito mais poderoso e temível, entidade maléfica com a qual não se negocia, apenas se entrega o exigido: a carne tenra de crianças.
Na obra de Vilar Madruga e em Corpos secos, assim como em Aniquilação, de Jeff Vandermeer, em Distância de resgate, de Samanta Schweblin e em tantos outros livros recentes, já estamos bem longe da natureza amistosa de tempos passados. Ela não é mais acolhedora, compreensiva, familiar, mas o oposto: é a pior vilã possível, pela completa extinção com que pode revidar à nossa presença. O que, sabemos bem, seria perfeitamente justo.
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